24 de dez. de 2011

Teoria dos Deuses

«Os deuses são o primeiro grau de abstracção.» 

Na evolução do espírito humano do pensamento concreto para o pensamento abstracto, há fatalmente um momento em que se dá a transição de uma forma de conceitos para a outra. Como se sabe, o homem primitivo , do mesmo modo que o selvagem de hoje, nas tribos cujo nível mental é de ordem a definir-nos qual fosse a mentalidade primitiva, não tinha o conceito abstracto. Não tinha, por exemplo, a ideia de «árvore», senão que simplesmente a ideia de tal árvore, concretamente. Herbart arquitectou uma curiosa teoria da formação das ideias abstractas; (...)
 
A evolução humana tem sido uma ascensão da capacidade de ter só ideias concretas para a capacidade de ter ideias abstractas. Como se deu essa transição? Podemos pôr várias hipóteses, mas qualquer delas, que possa ser considerada viável, há-de ter, para o ser, os característicos acumulados de uma hipótese a um tempo psicológica e sociológica. Não que isso forme duas hipóteses; é só uma, que inclui esses dois elementos, por isso que, sendo a mentalidade humana simultaneamente um facto individual e um facto ocorrido dentro da sociedade, as duas explicações redundam na mesma, abarcam um mesmo facto com dois aspectos, que são um só.

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Teoria dos deuses: Os deuses são o primeiro grau de abstracção. Ao passar do conceito concreto de tal árvore para a ideia abstracta de «árvore», o homem atravessou fatalmente um período intermédio. Que espécie de conceito faria ele das coisas — das árvores, para seguir o nosso exemplo — quando atravessava esse período? Pela hipótese, — e a hipótese marca sem dúvida um estádio que existiu, porque não podia deixar de existir, — o homem tinha já subido acima do conceito concreto de tal árvore mas não tinha chegado ao conceito abstracto de «árvore», de «árvore em si» (e aqui a expressão faz com que nos perguntemos se a «coisa-em-si» de Kant não seria uma mera concretização da abstracção.

Visto que não é abstracto ainda, esse conceito é concreto. Mas, visto que caminha para a abstracção, esse conceito não é inteiramente concreto. De que modo é concreto então? Podemos fazer várias hipóteses sobre como do concreto se chegou ao abstracto. A que logo ocorre, e logo é posta de parte, porque é ingénua e falsa, porque em círculo vicioso, é a de que o homem, reparando nas semelhanças entre as várias árvores, vá chegando à ideia de árvore; ou de que vá obtendo ideias primeiro, por exemplo, do carvalho, depois do abeto, e assim em diante, até, através dessas ideias, pelo mesmo processo, encontrar a ideia abstracta de árvore. Ambas estas hipóteses — duas formas, aliás, da mesma hipótese — pressupõem, porém, a já existência das ideias abstractas, por isso que o processo mental hipotetizado em elas mais não é do que um processo de abstracção, que subentende, portanto, que a abstracção já existe. É o género de hipótese que um homem civilizado forma quando desleixadamente, para fazer ideia de como um selvagem chegaria às ideias abstractas, abusivamente concebe que ele, civilizado, as não tenha, e a si próprio pergunta como as obteria se as não tivesse. Como não elimina de sua ideia, de seu espírito, as ideias abstractas, naturalmente supõe que as obteria por um modo que pressupõe que ele já as tenha.

Não foi este, por isso, o processo mental que o homem seguiu ao passar do pensamento concreto para o pensamento abstracto. Qual foi então? Reconstruamos, com os elementos que sabemos que temos, qual pudesse ter sido.
 
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Vendo a árvore florir, verdecer, dar fruto, murchar nas suas folhas, e perdê-las; depois, reverdecer, dar outra vez flor e fruto, e assim indefinidamente, o homem primitivo, que colhia, aliás, nos frutos um proveito dessa actividade ou vida da árvore, passou a reparar nos fenómenos de vida vegetal, no florescer, no frutificar, na primavera e no outono dos arvoredos. De aí, logo, um resultado: a cisão da noção concreta de tal árvore em duas coisas — uma, observada como estática, a árvore propriamente que permanecia sob a florescência, a frutificação e a queda das folhas; outra, vista como dinâmica, essa florescência, essa frutificação, essa velhice vegetal. Assim, a noção concreta da árvore, sem deixar de ser concreta, cinde-se em duas noções concretas, e no fenómeno «tal árvore», concreto em absoluto, a própria observação concreta abre brecha, cindindo-o em dois fenómenos concretos, apresentando, à mesma própria observação, os dois visíveis característicos opostos, de árvore-que-fica, de verdura-que-passa.

Sucede, a seguir, que o homem repara que esses fenómenos de vida vegetal se dão em todas as árvores. E se bem que não possa, no seu estádio de atraso mental, conceber a ideia de «árvore» abstracta, porque sempre tal árvore aqui, com tal aspecto e em tal lugar tal-outra árvore além, com tal-outro aspecto e em tal-outro lugar, já o mesmo não acontece com os fenómenos de vida vegetal que se dão em ambas árvores: esses fenómenos são dinâmicos, por isso chamam a atenção de outra maneira do que os estáticos, e o cérebro primitivo, que não vê semelhança entre árvore e árvore, porque árvore e árvore são coisas paradas e visíveis, permanentes e por assim dizer imutáveis, não pode fugir contudo a reparar que há semelhança entre os fenómenos que se dão em essa árvore e essoutra, porque a natureza transitória desses fenómenos faz atender a eles, a utilidade que a frutificação traz mais chama, para eles a atenção, e o geral carácter de estranheza, porque não são coisas quotidianas e habituais, mas sim periódicas, que esses fenómenos têm chama sobre eles uma atenção curiosa e não casual, e isso provoca a que se veja a semelhança entre a florescência de uma árvore e a florescência de outra árvore. Logo que esta semelhança é vista, está encontrada uma ideia concreta que serve de aproximação de duas ideias concretas: a de florescência servindo de aproximação de tal árvore e tal-outra árvore.
 
Esta noção de florescência, noção concreta, porque de uma coisa concreta, tem porém um característico especial. A florescência é uma coisa que não tem um lugar certo, mas sim vários lugares — todas as árvores e plantas onde se dá. Assim, fatalmente, a própria noção concreta de florescência tem uma feição especial que a distingue de todas as outras noções concretas — salvo, é claro, as que, do mesmo género, serviram ao mesmo processo mental. :É uma noção, por assim dizer, dispersa; é uma noção dinâmica; é uma noção, por último — e reparemos bem neste ponto — de uma coisa útil, ao contrário da de árvore-tal-árvore, como o primitivo a concebe — que não serve para nada.
 
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Encaminha-nos isto para uma consideração do estado social do homem primitivo que podia já ter estes pensamentos. Num período de absoluta selvajaria, de primitividade íntegra, eles não podiam aparecer. Só quando começou a domesticação dos animais, o cultivo da terra, só nas origens próprias da agricultura, este tipo de mentalidade pôde aparecer. Antes disso, além de que o acanhado da mentalidade que ainda não tivera artes de domesticar animais não indica que pudesse reparar nem para tão elementares fenómenos como o da frutificação com jeito de reparar deveras, há a ver que só quando uma nítida noção da utilidade — não só da Utilidade em geral, como também da utilidade das florescências e das frutificações — chamou a atenção para esses fenómenos, se esboçaria, e esboçando-se seguiria aumentando em clareza e congruência, uma noção suficientemente concreta da florescência e da frutificação para que pudesse ser caminho para uma noção abstracta; pois que, como provámos, a noção plenamente concreta da florescência é, de sua natureza, um passo para as noções abstractas.
 
Assim vemos como se entrepenetram os fenómenos social e psíquico na criação das ideias abstractas. Na época mental do homem em que ele pode chegar a um estado social que lhe permite formar-se a ideia de Útil — nessa época um concomitante e conexo fenómeno mental o faz atingir com atenção aqueles fenómenos do concreto que são de natureza a conduzi-lo às ideias abstractas.
 
O princípio das religiões está na divinização do fenómeno vegetal, e no de outros fenómenos da mesma natureza útil, dinâmica (...) Assim vemos que todos os deuses se reduzem a combinações e misturas de dois (três) géneros de deuses: os deuses da vegetação, e os deuses solares e astrais, por assim dizer.
Do mesmo modo, vemos que as religiões, propriamente tais, apareceram quando da transição do homem do estado mental puramente concreto para o já capaz de abstracção. E observa-se, de feito, que tal é o característico mental de todas as ideias religiosas, tanto das do paganismo como das outras.

O conceito de Deus que entre nós uma criatura religiosa, seja embora educada, faz, pertence a um género
de ideação que não é concreta nem abstracta.

Os deuses são as ideias humanas em passagem de noções concretas para ideias abstractas.
 
My hypothesis that all progress is based on a degeneration: Seria a transição do concreto para o abstracto por uma perda gradual da noção clara e sadia do concreto? A hipótese de que a transição dum período para outro procede através de um adoecimento é assim: há uma decadência, mas essa decadência, ao passo que é um prolongamento das coisas que existem nesse período, é, ao mesmo tempo, um aparecer de coisas novas que são o resultado da acção do fenómeno decadência sobre o fenómeno «tal estado de coisas»; assim aparece outro fenómeno. Depois esse fenómeno, em virtude de reacções contra ele do que há de são na sociedade, transforma-se em uma nova ordem de coisas. Se não há essa reacção, dá-se uma dissolução social. Entenda-se: todo o progresso provém de uma síntese de três elementos: 

1) (duvidoso) os elementos componentes de um estádio civilizacional; 

2) os elementos de decadência desse estádio; 

3) os elementos que reagem contra essa decadência. Estes últimos, ao mesmo tempo que reagem contra a decadência desses elementos, reagem contra esses próprios elementos, visto que, como nessa ocasião esses elementos só existem em estado de decadência, se se pusessem ao lado deles, isso seria porem-se ao lado da sua decadência, de elementos decadentes, que é a forma em que eles existem.)
 
(A dissolução de um estádio civilizacional representa: 1) o esgotamento das suas ideias-centrais, isto é, a inadaptação dessas ideias àquilo que o momento exige; 2) a formação, por esse mesmo facto, de essa decadência, de correntes que tentam salvar a sociedade... etc.)

A Índia foi a fase final das religiões do primeiro estádio civilizacional, isto é, o máximo da linha que partiu do homem super-primitivo, e ali chegou a seu ponto abstracto.

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A Grécia é um recomeçar. A Grécia é um regresso ao ponto de começo de todos os ciclos civilizacionais: o paganismo grego identifica-se em género à religião primitiva. Mas é uma oitava acima. De modo que de ali sobe a nossa civilizacão. E a Grécia aproveitara já elementos índios, isto é, elementos de uma cultura contrária à sua, porque um fim e ela era um princípio, e porque a Índia era de um estádio civilizacional anterior.

As civilizações vão por grandes ciclos, o fim de cada qual é criar na humanidade um tipo cada vez superior; de abstracção.

A civilização actual tem um característico que a distingue logo dos ciclos anteriores: é a universalidade, o abranger todo o mundo. Que resultado diferencial dará isto?
[...]

Estádios civilizacionais: 

a) aquele em que o homem domesticou os animais, o que deu origem à agricultura; nasceram as ideias de utilidade e de socialidade; nasceu o primeiro grau do conceito abstracto = o do vagamente concreto...
b) aquele em que uma raça superior dominou uma raça inferior e, por assim dizer, a domesticou como aos animais. Neste período nasceu o repouso, e de aí as artes propriamente tais. Nasceu o princípio aristocrático. Nasceu a sociedade propriamente dita.
c) aquele em que uma raça, reproduzindo o fenómeno anterior dentro de si própria, se separou em senhores e escravos ou inferiores. A nossa civilização é isto evoluindo. 1917?
 
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação. Fernando Pessoa. (Textos estabelecidos e prefaciados por Georg Rudolf Lind e Jacinto do Prado Coelho.) Lisboa: Ática, 1996. - 304.
 
Regresso dos Deuses?

 

7 de dez. de 2011

Coagulatio Alquimica - O Sofrimento Como Propiciador da Solidificação


 
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Saturno / Cronos


Resumo
A depressão, com seus aspectos simbólicos relacionados à Saturno, propicia na psique humana o retorno à interioridade e o aprisionamento de suas fantasias e devaneios na realidade limitada do mundo. Sente-se com isto, o sofrimento, o frio, o distanciamento social, assim como peso e escuridão, características evidentes do processo depressivo. Esta dimensão depressiva tem como principal finalidade proporcionar à psique um desenvolvimento criativo, promovendo o processo de individuação. A depressão pode ser associada subjetivamente ao metal Chumbo, que propicia o processo da Coagulatio alquímica, onde a solidificação, ou seja, a transformação do Mercúrio alquímico em terra, em sólido, é o principal objetivo, rumo ao encontro da pedra filosofal.
Abstract
Depression, with its symbolical aspects connected with Saturn, favors in human psyche the return of the interior and the imprisonment of fantasy. Depression causes the suffering, the cold, and the social distance, as well as weight and darkness. However, this depression dimension has the greatest goal to offer to psyche a creative development, promoting the individuation process. The depression can be subjectively associated to the metal, lead, that favors the Coagulatio Alchemist, where the solidification, or the transformation of Alchemist Mercury in earth, in soil, is the main goal, directed to meet the Philosopher's Stone.

A depressão, como qualquer outra realidade analisada sob o enfoque psicológico, revela uma instância paradoxal, formada por seus aspectos positivos e negativos (bipolaridade). Isto também é uma característica facilmente detectável na alquimia, onde basta folhear algumas páginas de seus tratados para se encontrar referências satisfatórias para tal afirmação. O presente artigo tem a pretensão de evidenciar estes aspectos paradoxais da depressão como propiciadores do processo Coagulatio, da Opus Alquímica. Para isto, será utilizada uma citação de Jacob Boehme, apresentada no livro Anatomia da Psique de EDINGER (1985, p.109), para que através de suas formações imagéticas e articulações, possamos compreender esta realidade.

"Saturno, esse frio, áspero, austero e adstritivo regente, não tem seu início e matriz no sol; porque Saturno tem em seu poder a câmara da morte, servindo para secar todas as forças, daí vindo a corporeidade. Pois assim como o sol é o coração da vida, e matriz de todos os espíritos do corpo deste mundo, assim também Saturno é iniciador de toda a corporeidade, compreensibilidade ou palpabilidade".


A alquimia, uma antiga tradição de origem incerta, foi foco dos estudos de Carl Gustav Jung a partir de 1928, após os conceitos básicos da Psicologia Analítica já haverem sido formulados, tornando-se assim, o seu principal estudo até o fim da sua vida. Com freqüência ele se deparava com sonhos de seus pacientes que não conseguia compreender nem com o estudo da mitologia, dos contos de fadas e estudos das religiões. Um dia, no entanto, consultando alguns livros sobre alquimia, percebeu que haviam muitas relações significantes entre as imagens oníricas de seus pacientes e as imagens contidas nestes livros.
 
Com o passar de seus estudos, Jung percebeu então que o simbolismo alquímico é, em grande parte, um produto da psique inconsciente do alquimista sobre a matéria a que se propunha estudar e manipular. Isto se deve a um mecanismo denominado projeção, considerada por Jung como uma manifestação psíquica natural em que o sujeito, sem ter consciência ou controle, projeta seu inconsciente sobre objetos, pessoas ou realidades. JUNG (1990, p. 256), em sua obra Psicologia e Alquimia afirma que:
 
...A real natureza da matéria era desconhecida do alquimista; ele tinha meros indícios a respeito. Ao tentar explorá-la, projetou o inconsciente sobre as trevas da matéria, a fim de iluminá-la... Enquanto fazia suas experiências químicas, o operador passava por determinadas experiências psíquicas que lhe pareciam ser o comportamento particular do processo químico. Como se tratava de uma questão de projeção, ele naturalmente desconhecia o fato de a experiência nada ter a ver com a própria matéria; mas sua experiência, na realidade, era do seu inconsciente.
 
Isto demonstra a fragilidade e o paradoxo entre o que é material e o que é psíquico, assim como a realidade de que não há como se relacionar com algo, sem colocar nossa interioridade como intermédio. Por isto é que PASSOS (1999, p.91) diz que "...E é dessa integração entre espírito e matéria que surge o mistério da alquimia e o mistério da análise, porque remetem ao mistério da alma, pela eterna ligação do inconsciente a "Anima Mundi"".

O trabalho dos alquimistas é chamado de Opus, onde, em termos gerais, tem como finalidade transformações e aperfeiçoamentos da prima matéria, buscando obter a sua transmutação em ouro ou pedra filosofal. Segundo SANTOS (1998), o conceito de prima matéria nasce a partir da crença de que existe uma substância primária, única e básica, de onde originou todo o universo. Este elemento se subdividiu então nos quatro elementos (água, terra, fogo e ar) e, frente a diferentes recomposições, formou os diferentes objetos físicos existentes no universo. Segundo BURCKHARDT2, a pedra filosofal pode ser definida da seguinte forma:
 
A pedra filosofal - com a qual se podem converter em ouro os metais vulgares - proporciona àquele que possui uma longa vida, livre de todas as enfermidades, depositando nas suas mãos mais ouro e prata do que os príncipes mais poderosos desse mundo possam possuir. Contudo, acima de todos os outros bens da vida, este tesouro possui a peculiar vantagem de tornar plenamente feliz aquele que possui, pois só o simples fato de olhar basta para o tornar feliz, além de que o temor de o perder é algo que nunca sente.
 
Em termos psicológicos, a pedra filosofal poderia ser comparada ao que se busca no processo de individuação, ou seja, a completude do ser, o tornar-se consciente e uno, o self. Tendo isto como realidade, a processo alquímico seria então o próprio processo de individuação, ou seja, o que gera o desenvolvimento e a transformação.

A Opus Alquímica é subdividida em inúmeros processos, normalmente denominados de Calcinatio, Solutio, Coagulatio, Sublimatio, Mortificatio, Separatio, Coniuctio entre outros, onde cada processo faz referência a um determinado elemento da prima matéria. Então, por exemplo, a Calcinatio tem relações com o fogo, o Solutio tem relações com o elemento água, e assim por diante. Em outros textos alquímicos, a Opus também pode ser encontrada como subdividida pelos seguintes processos: nigredo, albedo e rubedo.

JUNG (1977, p. 228), resume a Opus Alquímica da seguinte forma:
 
A alquimia representa a projeção de um drama ao mesmo tempo cósmico e espiritual em termos de laboratório. A opus magnum tinha duas finalidades: o resgate da alma e a salvação do cosmos... Esse trabalho é difícil e repleto de obstáculos; a opus alquímica é perigosa. Logo no começo, encontramos o "dragão", o espírito ctônico, o "diabo" ou, como os alquimistas o chamavam, o "negrume", a nigredo, e esse encontro produz sofrimento... Na linguagem dos alquimistas, a matéria sofre até a nigredo desaparecer, quando a aurora será anunciada pela cauda do pavão (cauda pavonis) e um novo dia nascerá, a leukosis ou albedo. Mas neste estado de "brancura", não se vive, na verdadeira acepção da palavra; é uma espécie de estado ideal, abstrato. Para insuflar-lhe vida, deve ter "sangue", deve possuir aquilo a que os alquimistas denominam a rubedo, a "vermelhidão" da vida. Só a experiência total da vida pode transformar esse estado ideal de albedo num modo de existência plenamente humano. Só o sangue pode reanimar o glorioso estado de consciência em que o derradeiro vestígio de negrume é dissolvido, em que o diabo deixa de Ter existência autônoma e se junta à profunda unidade da psique. Então, a opus magnum está concluída: a alma humana está completamente integrada.
 
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O Simbolismo do baphomet
O processo da Coagulatio é relacionado ao elemento terra, pois é a realidade da alquimia que solidifica, que corporifica, que transforma as coisas em terra, criando para elas formas e posições fixas. Esta seria a corporeidade, a compreensibilidade e a palpabilidade citada por Jacob Boehme. A Coagulatio também é associada ao processo da rubedo, ou seja, o sangue, "a vermelhidão" da vida. Neste processo, Mercúrio, também conhecido como Hermes, é a substância que deve ser coagulada. Este metal tem características próprias que retratam uma realidade fugidia e autônoma, sem forma ou padrão fixo. Suas imagens são também associadas ao espírito, em oposição à realidade corporal, à matéria. Ele representa a autonomia da psique e as relações paradoxais do Self, também encontradas constantemente nos textos alquímicos. Sua coagulação seria então concretizar, ou seja, promover a ligação Ego/Self. JUNG (1937, par. 101), comenta a relação espírito/Mercúrio dizendo que "O anjo, como um ser espiritual alado, representa como Mercúrio, a substância volátil, o pneuma, o desencorporado. Na alquimia o espírito tem quase que invariavelmente uma relação com a água ou com a umidade radical".



Segundo a alquimia, o processo da Coagulatio Alquímica sobre o Mercúrio se dá sob as influências do metal Chumbo, que representa o lado pesado, denso, incômodo e sombrio. Ele é associado ao planeta Saturno, também conhecido como o deus grego Cronos (tempo), onde segundo COMMELIN (1986), é filho segundo de Urano (céu) e da antiga Vesta (terra). Ele e seu irmão Oceano se revoltaram contra o pai, o impossibilitando de ter filhos. Urano, magoado e ferido morre, sendo então destronado por Saturno no lugar de seu irmão primogênito Titã, mas tendo como condição fazer morrer todos os seus filhos homens, a fim de que a sucessão do trono seja reservada para um filho de Titã. Casou-se com Réia ( a Grande Mãe), de quem teve muitos filhos. Saturno porém, herdara de seu pai o egoísmo e a crueldade para com os seus filhos, devorando-os avidamente, conforme combinara com seu irmão. Réia consegue então salvar três filhos, Júpiter, Netuno e Plutão e uma filha, Juno. Júpiter então o destrona e o transforma num simples mortal. Saturno foge e se esconde em Lácio, na Itália. Lá, se torna o rei da idade de ouro, onde seus pacíficos súditos são governados com doçura.

O lado maligno de Saturno é percebido perfeitamente na citação de Chaucer, no livro de EDINGER (1985, p. 109).
 
"Minha órbita, que tem de percorrer trilha tão longa, 
Tem mais poder do que qualquer homem pode imaginar.
Meu é o que se afoga lá embaixo do mar;
Minha a masmorra na parte mais baixa do fosso;
Meu o enforcado e quem se estrangula pela garganta;
Meus a rebelião e os murmúrios abjetos da multidão,
Os gemidos, os envenenamentos secretos,
E a vingança e as sanções arbitrárias - tudo é meu,
Embora eu ainda esteja sob o domínio do Leão,
Minha é a ruína de todos os altos salões,
E a queda de torres e paredes
Sobre o carpinteiro e o minerador.
Derribei Sanção, o destruidor de colunas;
E minhas mãos são todas as moléstias tão desalentadoras,
As negras traições e velhas patifarias;
Meu olhar é o pai de toda pestilência."

       
Segundo Thomas Moore (1984), Saturno é, desde a antigüidade (anos de 500 a 600 d.C.), associado à depressão, à melancolia e à tristeza Esta realidade, na alquimia, é associada ao processo da nigredo, pois imageticamente representam o sofrimento, a escuridão, o peso e a frieza. Por esta razão, a sociedade atual, que busca incessantemente a felicidade eterna, o brilhante, o colorido e o estético observam a depressão como repugnante e como um mal que deve ser combatido com todas as forças. A depressão é então uma instância sombria e reprimida da psique humana.

Há neste caso, uma total inconsciência da real natureza da psique, que se funda na relação dos opostos, no paradoxo entre o positivo e o negativo, o consciente e o inconsciente, o brilhante e o sombrio, o claro e o escuro. O processo de individuação trás ao indivíduo esta realidade da psique, pois seu objetivo é tornar consciente estas oposições paradoxais da alma, buscando o assim o desenvolvimento da alma do indivíduo. Para isto, porém, a pessoa deve se deparar com o sombrio, com o negativo, com a depressão, que é a primeira instância alquímica, a nigredo alquímica. Como fundamento arquetípico, Saturno tem sua parcela neste processo, pois teleologicamente promove a percepção dos opostos, aproxima os indivíduos às suas partes mais escuras e rejeitadas. Este é o lado positivo da depressão, unir opostos, transformar criativamente a psique, promover Coagulatio.

Por dominar a idade de ouro, o Saturno mitológico influencia arquetipicamente a psique humana, remetendo-a ao passado, à reflexão e à memória, sendo considerado como o patrono do passado, por preferir os dias que se foram. Este processo de voltar ao que passou promove na psique o sentimento de envelhecer, de morte e temporalidade. A pessoa sob seu domínio, sente-se mais velha e ao mesmo tempo mais sábia. Tem a percepção de que a vida está passando, seguindo seu caminho. É por esta razão que na depressão formam-se imagens explícitas de morte, de que o fim está próximo, assim como sentimentos de que não vale a pena continuar vivendo. O processo promove o deparar e consequentemente a aceitação da morte e o luto pela juventude. Nestas características é que reside o que Jacob Boehme explicitou afirmando ter Saturno o poder sobre a câmara da morte. A pessoa em depressão está inconscientemente vivendo o arquétipo da morte e do renascimento. Saturno nesta influência, retrata a oposição eternidade/temporalidade, imortalidade/mortalidade, self/ego.
Para JAFFE (1995, p.36):
  
 "O deprimido tenta com freqüência desviar sua atenção ou arrancar-se desse estado. Se conseguem, a morte não é experimentada na sua totalidade e pode não ocorrer o renascimento, que faz parte do processo. Deve-se reconhecer a existência de alguma boa razão para a depressão, e tentar compreender esta ajuda a si mesmo (...) Em Jonas no Ventre da Baleia, manter-se consciente na depressão, trás transformações fundamentais e positivas para o indivíduo.
  
Segundo Steinberg (1992), a visão de Jung é de que o alheamento percebido no processo depressivo frente ao meio externo, pode ser explicado aliando a depressão à introversão como uma forma de compensar uma orientação muito extrovertida, pois observando simbolicamente a depressão, ela indica a necessidade de se atender a vida interior. A pessoa extrovertida se caracteriza por uma extrema sensibilidade frente às necessidades do mundo externo, sendo concebida, quando exacerbada, como uma defesa contra a ameaça da perda que leva à desorganização e consequentemente à depressão profunda. Temem então a introversão pelo medo de descobrir alguma coisa no inconsciente que desencadeará um ciclo depressivo e porque o próprio processo de dar atenção a suas vidas interiores pode ter conseqüências assustadoras. Tanto olhar para dentro como o subsequente reconhecimento de sua natureza única, são atos de separação e independência, o que vem como conflito para alguém que vive para os outros, num ato de extrema simbiose e dependência. Por isto, exacerbam na extroversão e evitam a introversão, protegendo-se frente à ameaça da perda de amor.

No entanto, quando há uma depressão, a energia psíquica que antes era utilizada pelo ego para atos extrovertidos, retorna na forma de uma introversão forçada para o inconsciente, a fim de promover novas mudanças e desenvolvimentos na psique, ou seja, satisfazer as exigências do processo de individuação. Na vida prática do indivíduo, percebe-se com isto uma volta para seu mundo interior e consequentemente o retraimento social, a tristeza e a "falta de energia" tanto falada pelos depressivos, denominada por Jung de abaissement du niveal mental.

Saturno, como um planeta distante, frio e seco, é o regente arquetípico deste processo, pois quem está sob seu domínio, sente suas características tipicamente introvertidas, como compensação da umidade do calor e da proximidade, que representam a atitude extrovertida. Por isto, Jacob Boehme em sua citação, tão bem coloca que Saturno seca todas as forças. Thomas Moore (1994, p.134) descreve este processo associando ainda as atitudes introvertidas e extrovertidas com as características da anima e do animus, conforme citação abaixo:
   
Na linguagem junguiana, Saturno pode ser considerado como representante do animus. O animus é a parte profunda da psique que enraíza as idéias e abstrações da alma. Muitas pessoas têm forte anima - são cheias de imaginação, vivem próximas à vida, são empáticas e ligadas às pessoas ao seu redor. No entanto, essas mesmas pessoas podem ter dificuldade para se afastarem o suficiente do envolvimento emocional e conseguirem ver o que está acontecendo, e para relacionarem suas experiências de vida com suas idéias e valores. Sua experiência é "úmida", para usar outra metáfora antiga para a alma, pois estão por demais envolvidas emocionalmente com a vida, e assim podem se beneficiar de uma excursão para as distantes regiões do frio e seco Saturno.
   
Como já mencionado anteriormente, o metal chumbo, utilizado no processo alquímico, é relacionado a Saturno. Esta associação promove o aprisionamento das fantasias, devaneios e inflações da alma na densa e pesada realidade, com suas limitações corporais e pessoais. Este processo é nitidamente colocado por Thomas Moore (1994, p.131), quando diz que este é um processo que permite a "(...)aglutinação dos elementos leves e aéreos. Neste sentido, a depressão é o processo que gera uma valiosa aglutinação de pensamentos e emoções(...)nossas idéias antes leves, divagadoras e desligadas umas das outras, reúnem-se mais densamente e formam valores e uma filosofia, dando às nossas vidas substância e firmeza". O chumbo então, completa o processo que retrata a realidade depressiva sob os domínios de Saturno.

A realidade depressiva contribui no Processo de Individuação, pois proporciona um movimento de compensação inconsciente, desenvolvendo com isto a psique. Considerando novamente a citação inicial de Jacob Boehme, com seus símbolos e imagens, percebemos que Saturno, tanto mitológico como planetário, com seus aspectos considerados frios, ásperos, austeros, adstritivos, nocivos, perigosos e negativos, associados ao chumbo alquímico, podem, numa realidade mais positiva, promover o desenvolvimento e o movimento psíquico através do sofrimento e da depressão, passando assim numa postura mais criativa do inconsciente, para o processo alquímico rubedo, Coagulatio, ou seja, a corporificação do espírito/Hermes/psique, a união do ego com o si-mesmo.



Referências Bibliográficas:

BURCKHARDT, Titus, Triunfo da Hermética. Apostila Solve et Coagula.
    COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro. Editora Tecnoprint, 1986.
    EDINGER, Edward F. Anatomia da Psique - O simbolismo alquímico na psicoterapia. 10. Ed. São Paulo: Editora Cultrix, 1990.
    JAFFE, Lawrence W. Libertando o Coração: Espiritualidade e Psicologia Junguiana. 9° Ed. São Paulo. Editora Cultrix, 1995.
    JUNG, C.G.. The Visions os Zozimos. In:, Alchemical Studies. 1937.
    JUNG, C.G.. Psicologia e Alquimia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 1990.
    _____. Carl Gustav Jung Speaking. Organizado por William McGuire e R.F.C. Hull. Princeton, Nove Jersey: Princeton University Press, 1977.
    MOORE, Thomas. Cuide de sua alma. São Paulo: Editora Siciliano, 1994.
    PASSOS, Maria Cristina Carvalho. A metáfora Alquímica. Psicologia Argumento, Curitiba, ano 17, N° 24, p.81-88, abril 1999.
    SANTOS, Vitor P. Calixto dos. Jung e a Metáfora Alquímica. Disponível na Internet. http://www.symbolon.com.br/metaforaalquimica.htm. 27 ago. 2000.
    STEINBERG, Warren. Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana. São Paulo. Cultrix, 1992.   
1 Filiação científica: Estagiário de 5° ano do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba - PR, sob a supervisão da professora Maria Cristina Carvalho. E-mail: julianoboi@yahoo.com.br
2 – O texto de Burckhardt foi retirado da apostila Solve et Coagula, cedida pela supervisora Maria Cristina Carvalho, porém não consta origem, data nem página.

Um texto de: Juliano Maluf Amui

+ Estudo do VITRIOL, INRI e Solve et Coagula



  

22 de nov. de 2011

Mundo do Porvir; Nova Ordem, Princípios, Ensaios...

...O indivíduo, por conseguinte, é que é importante, e não a sua idéia ou aquele a quem segue, ou a sua pátria, ou a sua crença. Vós é que tendes importância, e não a ideologia ou a nação, a bandeira ou o credo a que pertenceis; (…) Esses fatores de condicionamento podem, num dado nível, ser úteis como conhecimento; mas, noutro nível, (…) tornam-se eles daninhos e destrutivos em extremo. (…) (Nosso Único Problema, pág. 82-83)


http://farm3.static.flickr.com/2036/2399167382_1ce76a128f.jpgSe queremos ter paz no mundo, não podemos mais pertencer a nenhuma nacionalidade. Aqueles que são pessoas importantes no mundo, que têm posição, prestígio, não desejarão naturalmente fazer nenhuma experiência nesse sentido (…). Só as pessoas comuns, aquelas que não têm nem poderio nem posição e que lutam e se esforçam por compreender, são essas, talvez, as que começarão a experimentar e a descobrir por si mesmas. (Viver sem Temor, pág. 23)

(…) A submissão do homem aos interesses materiais equivale, em última análise, a provocar guerras e catástrofes econômicas e sociais. Procurar o enriquecimento por meio de coisas, sejam elas manufaturadas, sejam produto do intelecto, é criar pobreza interior, (…) desventura. O acúmulo de tais riquezas e a relevância que lhes atribuímos privam o pensamento-sentimento de compreender o real, o único fator capaz de trazer ordem, clareza, felicidade. (Autoconhecimento, Correto Pensar, Felicidade, pág. 152)

Por certo, toda mudança exige ordem. Vemo-nos atualmente num estado de desordem, e, para se sair da desordem, necessita-se de ordem: ordem social, ordem dentro de nós mesmos, e ordem em nossos valores (…) perspectiva das coisas. Assim, pois, mudar (…) significa estar livre para estabelecer a ordem. (…) A sociedade teme que a liberdade acarrete desordem, porque está satisfeita em viver nessa desordem a que chama “ordem”. (…) (O Descobrimento do Amor, pág. 26)

Assim, quando emprego a palavra “mudança”, entendo: “mudança da desordem para a ordem”; porque, como indivíduos humanos, não nos achamos em ordem. Estamos em conflito, (…) confusos, ambiciosos, ávidos, invejosos (…) Temos medo, terror, de tantas coisas; e alterar inteiramente essa estrutura de medo, significa promover a ordem. (…) (Idem, pág. 26)

(…) A ordem, portanto, não é produto de revolta, porque a revolta contra a sociedade é uma reação que só produzirá uma série de ações dentro dos limites da estrutura social, e, como acontece com o comunismo ou qualquer outra espécie de reação, volta-se, com o tempo, ao ponto de partida. (Idem, pág. 26-27)

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A ordem - que é em essência o começo e o fim da virtude - não surge (…) mediante ato deliberado. Qualquer ato deliberado para estabelecer a ordem é imoral (…) A ordem social que estabelecemos em várias partes do mundo baseia-se (…) na competição, na inveja e na brutalidade. Nossa ordem social é desordem e, por conseguinte, imoral. Não estou condenando a sociedade, porém apenas discriminando fatos. (O Descobrimento do Amor, p. 111)

Mas a ordem é negada por causa da própria estrutura básica, psicológica da sociedade. Ainda que se proclame o contrário, a sociedade está notoriamente baseada na competição, na avidez, no impulso agressivo (…) Em tal sociedade não pode existir liberdade (…) (O Descobrimento do Amor, pág. 116)

A ordem só pode nascer do percebimento da desordem. Não podeis criar a ordem; percebei bem esse fato. O que podeis fazer é tornar-vos cônscios da desordem existente tanto no exterior como no interior. Uma mente desordenada não pode criar nenhuma ordem, porque não sabe o que significa ordem.  Poderá unicamente (…) criar um padrão a que chama “ordem” e, depois, tratar de ajustar-se a esse padrão. Mas, se a mente se torna cônscia da desordem em que está vivendo - ou seja, do negativo, sem projetar o positivo - a ordem se torna então algo extraordinariamente criador, um movimento vivo. (…) (O Descobrimento do Amor, pág. 121)


A ordem que vem da compreensão da desordem, não segue nenhum plano previamente traçado (…) nenhuma autoridade, ou vossa própria experiência. Essa ordem, é óbvio, deve surgir sem se fazer nenhum esforço - pois o esforço deforma -, sem se exercer nenhum controle. (Fora da Violência, pág. 78)

Controle supõe repressão, rejeição ou exclusão, separação entre o “controlador” e “a coisa controlada”, supõe conflito. (…) Dizeis: “como pode haver ordem sem controle, sem a ação da vontade?” - mas, como já dissemos, controle implica separação entre “o controlador” e a coisa que vai ser controlada; nessa divisão, há conflito, deformação. Quando se percebe isso realmente, está terminada a separação entre “controlador” e “coisa controlada” e, por conseguinte, há compreensão. (…) (Idem, pág. 78)

A ordem não é um plano, um padrão de vida. Ela só vem ao compreendermos o “processo” total da desordem. (…) Nossa vida é desordem, ou seja, contradição - dizer uma coisa, fazer outra, (…) Essa é uma existência fragmentária e, dentro dessa fragmentação, queremos descobrir uma espécie de ordem. (…) A mente sujeita ao controle e à disciplina, padrão estabelecido pela própria pessoa, pela sociedade ou por determinada cultura, não é livre, é (…) deformada. (…) E pela compreensão da desordem, de como se origina ela, surge a ordem - uma coisa viva. (Fora da Violência, pág. 117)

A ordem, pois, é necessária, e a própria compreensão da desordem cria sua peculiar disciplina, e esta é ordem, sem repressão nem ajustamento. (…) Disciplina significa “aprender”, e não acumular conhecimentos mecânicos; cumpre-nos aprender a respeito da vida desordenada que estamos levando (…) Se o estamos observando em nós mesmos, surgirá então, naturalmente, a ordem, a liberdade; estaremos livres de toda e qualquer autoridade e, por conseguinte, do medo. Poderemos errar, mas saberemos corrigir imediatamente os nossos erros. (Idem, pág. 117-118)

A ordem, conforme me parece, só pode realizar-se ao descobrirmos por nós mesmos o que gera desordem; da compreensão do verdadeiro fator da desordem, nascerá naturalmente a ordem. (…) Assim, a ordem a que nos referimos não é um ato positivo, porém só se realiza pela compreensão e negação da desordem. Mas, da compreensão da desordem resulta uma ordem natural. (…) (A Suprema Realização, pág. 222-223)

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Cumpre-nos averiguar o que é que gera a desordem, tanto no mundo exterior como no interior. A compreensão da desordem exterior traz a compreensão da desordem interior. Mas essa desordem que dividimos em “exterior” e “interior” é essencialmente uma só e mesma coisa; (…) porquanto cada um de nós (…) é ao mesmo tempo sociedade e indivíduo. O indivíduo não está separado da sociedade; ele criou a estrutura psicológica da sociedade, e nela se acha todo enredado. Se trata de libertar-se dessa estrutura psicológica. (Idem, pág. 223-224)

Ordem significa um estado mental em que não há contradição e, portanto, nenhum conflito. Isso não implica estagnação ou declínio. A ordem que obedece a uma fórmula, a um ideal ou conceito é, simplesmente, desordem. Se um ente humano se ajusta a um padrão de pensamento - uma certa coisa ideal que ele deveria ser - nesse caso está meramente a imitar, a ajustar-se, a disciplinar-se, a forçar-se, a fim de adaptar-se a um molde. (…) (A Essência da Maturidade, pág. 21)

Ora, (…) estamos começando a ver o que é necessário, e que a ordem, a absoluta ordem interior, é indispensável. Há duas espécies de ordem: a primeira é a ordem gerada pela disciplina, a ordem do soldado, exercitado (…) para obedecer, ajustar-se, cumprir instruções. (…) Essa é (…) uma ordem puramente mecânica e insignificante. (Onde está a Bem-Aventurança, pág. 56)

Mas, há outra ordem, de espécie totalmente diferente, não dependente de ajustamento, de imitação, de padrão algum. (…) Porque a liberdade é absolutamente necessária. (…) E a liberdade não vem por meio da disciplina, mas por meio da ordem - não a ordem mecânica da respeitabilidade, (…) que a sociedade quer impor ao homem, (…) de uma sociedade corrupta, em decomposição. A ordem a que nos referimos é de espécie e dimensão totalmente diferentes; ela vem com a compreensão da desordem. Da negação do que não é verdadeiro, vem o positivo. (Idem, pág. 56)

Passemos, pois, a descobrir o que é a desordem. Toda a atual estrutura social baseia-se na desordem, com divisões de classe e de outra espécie. Quando cada homem só está a trabalhar para si próprio, a competir, a endeusar o êxito e a fama - isso faz parte da desordem, tanto exterior como interior. Desordem significa conflito interior, profundo, na estrutura psicológica; e conflito exterior, com o próximo, com a esposa ou marido. (Onde está a Bem-aventurança, pág. 56-57)

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Existirá sempre conflito enquanto houver atividade egocêntrica. E o conflito gera, necessariamente, a desordem. Há a desordem decorrente das nacionalidades (…); a desordem causada pelas religiões, separando as pessoas (…) E, para descobrirmos o que é a ordem (e ela existe dentro de nós, a ordem absoluta, e não uma ordem relativa, circunstancial: ordem total e absoluta) - para descobrirmos o que é a ordem, temos de compreender o que é a desordem, (…) a desordem existente no mundo e os fatores que a produzem. (…) (Idem, pág. 57)

A ordem, pois, é virtude. (…) A ordem, como a virtude, não é cultivável; se cultivais a humildade, não sois, de certo, humilde (…) O que se pode fazer é apenas ver a desordem total existente dentro e fora de nós - vê-la! (…) Não se pode ver a desordem por meio de explicações, (…) de análise das várias causas da desordem. (Onde está a Bem-Aventurança, pág. 57)

O homem, no mundo inteiro, está sendo organizado - econômica, social e religiosamente. Vive em cidades densamente povoadas, em arranha-céus, em “gavetas”, em “caixas”. (…) E, enredado nessa espantosa “eficiência” organizadora (…), busca o homem fronteiras mais longínquas, espaço mais amplo, (…) ilimitado, sem horizonte, sem margens. (…) (Uma Nova Maneira de Agir, 1ª ed., pág. 135)

Vós não deveis seguir a ninguém, inclusive a mim mesmo. Pela vossa voluntária compreensão é que chegareis a criar qualquer organização que se torne necessária. Ao passo que, se uma organização vos fosse imposta, tornar-vos-íeis meros escravos dessa organização e seríeis explorados. (…) (Palestras no Chile e México, 1935, pág. 16-17)
 
Eu não sou contra todas as organizações. Sou contra aquelas que impedem o preenchimento individual, especialmente a organização que se chama religião, com seus temores, crenças (…) Supõe-se que ela auxilia o homem, porém, de fato, embaraça profundamente o seu preenchimento. (Idem, pág. 17)

(…) O problema é também vosso, porquanto todos nós necessitamos de roupa, alimentação e moradia. Essas coisas precisam ser organizadas em escala mundial, e não apenas numa escala comunal, o que significa que necessitamos de homens que não estejam com o sentido no nacionalismo, etc., mas, sim, no próprio homem. Que tenham em mente (…) a felicidade humana. (…) (Uma Nova Maneira de Viver, pág. 14)

No entanto, podemos viver em extrema simplicidade e sensatez, e conseqüentemente em paz, se nossa mente e nosso coração não estão entranhados do desejo de posse, quer das coisas feitas pela mão, quer das criadas pela mente. (O Caminho da Vida, pág. 20)

O de que necessitamos em matéria de alimentação, vestuário e teto, chegar-nos-á de maneira fácil e racional, quando as nossas vidas tiverem sido libertadas da violência. Essa liberdade que nos abriga da violência é o Amor. (Idem, pág. 20)


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O especialista, econômico ou religioso, político ou social, nos está conduzindo ao desastre. Cada um de nós deve interessar-se com empenho na criação de uma nova sociedade ou uma nova civilização, resguardada das causas que estão destruindo e desintegrando o mundo em que vivemos. (…) (Idem, pág. 20)

(…) Podem os especialistas oferecer-nos planos de ação cuidadosamente elaborados, mas não são as ações planejadas que irão trazer-nos a salvação, mas tão somente a compreensão do processo total do homem, isto é, de vós mesmos. (O Caminho da Vida, pág. 25)

(…) Isto é, ao invés de esperarmos por um milagre que altere este sistema, é necessário que haja uma completa mutação revolucionária cuja necessidade todos reconhecem. (Palestras em Auckland, 1934, pág. 154)

(…) Quer isto dizer, senhores, que somente pode haver verdadeira liberdade de comércio, desenvolvimento das indústrias, etc., quando não mais houver nacionalidades no mundo. (…) Enquanto houver muros tarifários protegendo cada país, haverá guerras, confusão e caos; (…) (Idem, pág. 155)

Ora, na minha opinião, a exploração manifesta-se quando os indivíduos buscam ter mais do que exigem as suas necessidades essenciais. (…) Naturalmente, necessitamos de alimento, abrigo, vestuário e tudo o mais; porém, a fim de tornar essas coisas possíveis para todos, os indivíduos têm de começar a perceber quais são as suas próprias necessidades, e organizar sobre elas todo o sistema de pensamento e ação. (Palestras em Auckland, 1934, pág. 153)

Pergunta: O senhor, como outros orientais, parece ser contrário à industrialização. Por quê?
Krishnamurti: Não sei se muitos orientais são contrários (…), mas julgo já haver explicado (…) não ser a industrialização a solução para os problemas humanos e os conflitos e aflições deles decorrentes. (Autoconhecimento, Correto Pensar, Felicidade, pág. 92)

A mera industrialização estimula os valores materiais; banheiros e automóveis amplos e luxuosos, distrações, diversões e tudo o mais. Aos valores eternos se sobrepõem os transitórios. Procura-se a felicidade e a paz por meio da posse, das coisas elaboradas pela mão e pela mente do homem. (…) (Idem, pág. 92)

Queremos nos distrair, divertir-nos, fugir de nós mesmos, tal a nossa miséria e pobreza interior, a nossa vacuidade e tristeza. E, desse modo, onde há procura, há produção e a tirania da máquina. No entanto, julgamos poder solucionar o problema econômico e social com a simples industrialização (…) (Autoconhecimento, Correto Pensar, Felicidade, pág. 92)

Podeis fazê-lo temporariamente, mas com isso surgem as guerras, as revoluções, a opressão e a exploração, conduzindo a chamada civilização - a industrialização e tudo que ela implica - a um estado de barbárie. (…) Para o indivíduo rico interiormente, a industrialização tem seu devido significado. (…) (Idem, pág. 92-93)

https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEiCrjzTQA7EZoQaeaBg1aw380mbcblUNd5t4oM-V78HnFoda7GO7o-enO5O6SlQELWwldsPSrENzkRLu1xRxTTCSfmnYt9z3GpU_iaR1Iz30qCCQO1f3OIOuvDWmHbyLHGWetVan8mNoys/s1600/2004+banksy_christ.jpgSem o poder equilibrante da compaixão e da espiritualidade, teremos, com o simples aumento da produção de coisas, o aperfeiçoamento de obras e de técnica, guerras de maiores proporções e mais bem organizadas, opressão econômica e fronteiras poderosas, bem como formas mais sutis de ludibriar, desunir e tiranizar. (Idem, pág. 93)

Senhor, este é o “nosso mundo”. Não é um mundo comunista, nem um mundo capitalista, mas um mundo nosso, para nele vivermos (…) e sermos felizes. (…) Mas quando existe o sentimento de que esta é a nossa Terra, não haverá então empregador e empregado, não haverá o sentimento de que um é o “patrão” e outro, “o empregado”. (…) (As Ilusões da Mente, pág. 61)

(…) O homem de negócios pergunta: “que posso fazer?” Se ele tiver aquele sentimento, poderá fazer centenas de coisas; poderá fazer ricos os pobres, dando-lhes participação no negócio, tornando o seu negócio uma sociedade cooperativa. (…) (Idem, pág. 62)

Penso ser este o problema real (…) Temos agora as máquinas e as técnicas que permitem produzir tudo de que necessita o homem, e em breve, provavelmente, teremos uma distribuição equitativa dos recursos para a satisfação das necessidades físicas, e a cessação da luta de classes; mas o problema básico continuará existente. O problema básico é que o homem não é criador, não descobriu por si mesmo a extraordinária fonte de criação, não inventada pela mente; e só quando se descobre essa fonte criadora, atemporal, é que se encontra a suprema felicidade. (Da Solidão à Plenitude Humana, pág. 55)

Estão-se verificando importantes mudanças no mundo, no campo científico e no campo da medicina. Temos o computador, a automação, que irão proporcionar ao homem muito lazer. Ainda não chegou talvez a hora de fruirmos esse lazer, mas está por chegar. O homem vai ter liberdade e lazer em abundância, para fazer o que quiser. A família, as relações entre marido e mulher - tudo vai ser revolucionado. Na hora atual, ocorre uma extraordinária mudança no mundo, no terreno econômico, social, científico, médico. (Viagem por um Mar Desconhecido, pág. 111)

(…) Porque, no final de tudo, o mundo tenderá mais e mais e mais no sentido da federação e não do constante fracionamento. (…) Nessas condições, o que cada um de nós pode fazer é abandonar o comunalismo: podemos deixar de ser brahmanes, (…) de pertencer a qualquer casta ou a qualquer nação. (…) (Novo Acesso à Vida, pág. 6)

Posso expor os princípios básicos, (…) mas não tem valor algum. O que tem valor é vós e eu descobrirmos juntos os princípios básicos sobre os quais se deveria edificar uma sociedade nova; porque no momento em que descobrirmos, conjuntamente, (…) existirá uma nova base de relações entre nós. (…) (Novo Acesso à Vida, pág. 154)

Já não serei o instrutor e vós o discípulo, ou vós o auditório e eu o conferencista (…) Significará isso ausência de autoridade (…) Seremos parceiros no descobrimento e, por conseguinte, estaremos em cooperação; (…) (Idem, pág. 154)

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Enquanto houver autoridade nas relações entre pessoas, haverá compulsão; e pela compulsão nada se pode criar. Um governo que compele, um instrutor que compele, um ambiente que compele, não cria relações, mas apenas um estado de escravidão. (Idem, pág. 154)

(…) Quando não existe domínio, autoridade, compulsão, que significa isso? Significa, é claro, que há afeição, que há ternura, que há amor, que há compreensão. (…) (Novo Acesso à Vida, pág. 155)

É muito importante que cada um de nós descubra qual é a sua relação com a sociedade, se ela está baseada na ganância - que significa auto-expansão , preenchimento do “eu”, que supõe poder, posição, autoridade - ou se simplesmente aceitamos da sociedade as coisas essenciais, tais como alimentação, roupa e moradia. (…) (A Arte da Libertação, pág. 173)

(…) Como a atual sociedade se está desintegrando rapidamente, precisamos descobrir; e aqueles cuja relação é só de necessidade, criarão uma nova civilização, constituirão o núcleo de uma sociedade na qual as coisas necessárias à vida serão distribuídas equitativamente, e não utilizadas como meio de auto-expansão. (…) (Idem, pág. 174)

Considerando-se o mundo - não só o que se passa neste país, na Ásia, mas também na Rússia, onde estão ocorrendo grandes mudanças (…) - considerando-se tudo isso, não podemos deixar de perguntar-nos se a nova semente já estará a germinar, se já estará a nascer uma nova cultura, uma nova sociedade, uma mente nova, não moldada pelo velho padrão, (…) isenta das infantilidades que hoje praticamos. (…) (A Importância da Transformação, pág. 103)

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O desafio é imenso; temos de enfrentá-lo (…) com a compreensão de todo este mundo humano - de guerras, fome, nações subdesenvolvidas, superpovoamento, o luxo dos ricos e o sofrimento dos pobres, etc., etc. (…) Se pudermos observá-lo totalmente, (…) penso que encontraremos então a resposta - a qual pode não corresponder a nosso gosto, pode não ser a que desejamos. (…) (Idem, pág. 104)

(…) Digo-vos, porém, que não podeis resolver esses problemas separadamente; não podeis resolver o problema religioso isoladamente, nem o econômico, nem tampouco o social, mas fá-lo-eis verificando a relação de interdependência que entre si têm os problemas religioso, social e econômico. (Palestras em Auckland, 1934, pág. 5)

(…) Enquanto não tratarmos dos problemas social, religioso e econômico como um todo compreensivo e não dividido, percebendo antes a delicada e sutil conexão (…), não o podereis resolver, apenas aumentareis a luta. (Palestras em Auckland, 1934, pág. 6)

Pergunta: Por que não alimentais os pobres, em vez de falar?

Krishnamurti: Agora, o interrogante quer saber por que falo. (…) Para que os pobres sejam alimentados, necessita-se uma revolução completa; não uma revolução superficial, da esquerda ou da direita, mas uma revolução radical; (…) Uma revolução baseada em idéia não é revolução; pois qualquer idéia é mera reação a determinado condicionamento, (…) não pode produzir modificação fundamental. (…) (Que Estamos Buscando, pág. 29-30)

Só quando vós e eu estivermos livres de idéias, poderemos produzir uma revolução radical, interiormente, e, portanto, exteriormente. Não se trata de ricos nem de pobres. O que há é a dignidade humana, o direito de trabalhar (…) Não há, então, ninguém que tenha demais, para dar de comer aos que tenham de menos. Não há diferenças de classes. (…) (Idem, pág.30)

Será uma realidade, quando houver aquela radical revolução interior. (…) Uma transformação fundamental dentro de cada um de nós. Não haverá então nem classes, nem nacionalidades, nem guerras, nem separatismo destrutivo; e isso só poderá verificar-se quando houver amor em vosso coração. (…) (Idem, pág. 31)

A unidade humana só pode encontrar-se no amor, no esclarecimento que nos traz a verdade. Essa unidade do homem não pode estabelecer-se mediante simples ajustamento econômico e social. (…) Esperamos que uma revolução externa, uma reforma exterior dos valores, transformem o homem.

Embora, sem dúvida, essas coisas produzam certos efeitos no homem, a sua vontade aquisitiva (…) continua a existir. Essa atividade aquisitiva, infinita e vã, não pode em tempo algum trazer a paz ao homem, e é só quando o indivíduo está livre dela, que pode haver o estado criador. (O Egoísmo e o Problema da Paz, pág. 168)

Crédito das Imagens: Banksy 

12 de nov. de 2011

Profecias e suas Consequências


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O ser humano há muito convive com profecias, fins de mundo e outros fatos que visam apenas amedrontar e subjugar a mente. Criou-se uma forma-pensamento forte que constantemente é alimentada. Será que alguma profecia tem fundamento? Profetas existem? Se sim, como distinguir o verdadeiro do falso? As profecias do passado e do presente. Quais as reais consequências da proliferação desse tipo de notícia? Acontecerá algo em 21 de Dezembro de 2012? O que significa o calendário maia findar-se nesta data?




 

4 de nov. de 2011

Os Simulacros Nada Têm a Esconder

 
 Um post de CINEGNOSE (Acesse) - Autor: Wilson Roberto Vieira Ferreira


Sucesso de público e de crítica, as palavras “simulacro” e “simulação” foram a parte mais mal compreendida do pensamento de Jean Baudrillard. Ele jamais procurou encontrar a “realidade” ou a “verdade” por trás das ilusões do mundo como faz a crítica ideológica tradicional. Seu projeto era de um ceticismo mais radical: denunciar os discursos que afirmam dizer sobre alguma coisa, mas que, na verdade, apenas escondem que nada têm a esconder, seja na Política, Economia ou na Mídia.


Simulacro e simulação tornaram-se os mais conhecidos conceitos dentro do pensamento de Baudrillard, chegando até ao mainstream hollywoodiano na célebre passagem do filme Matrix (1999) onde o protagonista, Neo, esconde programas piratas dentro de um livro oco cuja capa é do célebre livro “Simulacros e Simulações”. Talvez o sucesso de público desses conceitos se deva menos à compreensão dentro da teoria não materialista da linguagem defendida pelo autor e, muito mais, pela sua tradução feita pelo tradicional discurso da crítica da ideologia como falsa consciência. Muitos autores ignoram a idéia da simulação original, preferindo interpretar a bem conhecida três ordens do simulacro através de uma leitura ortodoxa como abaixo:
“Baudrillard argumenta que há três níveis na simulação, onde o primeiro nível é uma óbvia cópia da realidade e o segundo nível uma cópia tão boa que suspende as fronteiras entre realidade e representação. O terceiro nível é a da produção da realidade sem se basear em qualquer elemento do mundo real. O melhor exemplo é provavelmente a ‘realidade virtual’ onde um mundo é gerado por meio de linguagens ou códigos.”[1]
É como se, no início existisse a realidade e o signo que fizesse sua cópia por meio da representação.  A partir daí é como se a espiral dos simulacros e da simulação se apossasse dos signos, corrompendo-os, instaurando uma representação ideológica do mundo. O simulacro e a simulação, além de serem tomados como sinônimos, passam a ser interpretados como uma disjunção entre forma e conteúdo, infraestrutura e superestrutura. Ou seja, estes conceitos são aprisionados dentro da crítica da dissimulação, da manipulação,  da mentira, da denúncia contra todas as formas de falsa consciência.

Porém, como vimos até aqui, não existe uma teoria da representação em Baudrillard. Portanto, não há propriamente uma crítica ideológica, pelo menos não no sentido de crítica à falsa consciência.
“A ideologia é, de fato, todo o processo de redução e abstração do material simbólico numa forma – mas esta abstração redutora dá-se imediatamente como valor (autônomo), como conteúdo (transcendente), como representação de consciência (significado)”[2]
A crítica ideológica tradicional encontra-se no paradigma da dissimulação: denunciar que por trás do discurso que esconde existe algo real. Há algo para ser escondido. Ao contrário, a crítica ideológica baudrillardiana está no campo da simulação: denunciar os discursos que afirmam dizer sobre alguma coisa, mas que, na verdade, apenas escondem que nada têm a esconder. A simulação está nas próprias origens da linguagem, na sua própria abstração redutora da dimensão simbólica, negando a transitividade sujeito/objeto e instaurando a precessão do modelo e da binariedade do código.

O Duplo Sentido da Simulação

Os simulacros religiosos: a imagem é
reflexo de uma realidade profunda
Segundo Baudrillard a simulação, embora esteja a serviço do aniquilamento da dimensão simbólica e a favor da ordem do signo nos sistemas, testemunha a própria ilusão do signo e da representação. A representação tenta absorver a simulação ao rotulá-la como falsa representação, mas encobre o fato de que a simulação envolve todo o edifício da representação como um simulacro.

Para compreender este duplo sentido da simulação (estar a serviço da reprodução dos sistemas e, simultaneamente, testemunhar a miragem da representação) precisamos entender a sutil diferença entre simulacro e simulação. Simulação tem a ver com a sedução original do mundo e da própria linguagem. É o pressuposto Maniqueísta gnóstico de Baudrillard da luta e reversibilidade entre o Bem e o Mal. Já o simulacro envolve as diferentes maneiras ou fases dessa simulação se manifestar no transcorrer da história.


“Seriam essas as fases sucessivas das imagens que conduzem à formação dos simulacros: 
- ela [a imagem] é o reflexo de uma realidade profunda  
- ela mascara e deforma uma realidade profunda
- ela mascara a ausência de realidade profunda
- ela não tem relação com qualquer realidade: ela é o seu próprio simulacro puro”[3]
Na primeira fase temos o simulacro como boa aparência: a certeza de que um signo possa remeter para a profundidade do sentido, o partido da representação. Existe uma suposta equivalência do signo e do real. Alguma coisa serve de caução para essa troca: Deus, Realidade, Valor de Uso, etc. O realismo de uma fotografia baseia-se na certeza da troca entre a foto e a pessoa fotografada. O Real é a sua caução. Da mesma forma, se temos uma nota de um real (um signo monetário) sabemos que ela é verdadeira por possuir uma equivalência correspondente ao seu valor no Banco Central. O valor econômico é a caução.

A segunda fase corresponde ao simulacro como falsa aparência ou ao sortilégio. Ainda dentro do regime da representação, é o momento em que o signo dissimula, mente ou deforma uma realidade profunda. Uma fotografia pode ser manipulada através de processos de retocagem seja analógica ou digital. Uma nota de um real pode ser falsa. Nestes casos, pressupõem-se existir ainda uma realidade a qual se renuncia ao produzir uma falsa aparência. É como se ocorresse uma clivagem entre o signo e a realidade. Mas ainda existe a oportunidade de desmascarar esta mentira e revelar-se o segredo.

A terceira fase é a do simulacro como ilusão de aparência. O signo simula ter algum referencial ou estar ancorado em um objeto real quando, na verdade, tudo não passa de um blefe. Sua aparência é a da representação, mas nada consegue do que remeter-se a si mesmo. Não há profundidade, mas apenas um discurso metonímico: signos que espelham outros signos, cópias de cópias que se refletem mutuamente. A fotografia não consegue mais capturar o real a partir do momento em que a pessoa sabe que ali está a câmera e posa para ela, simulando personas ou atitudes. Quem representa o quê? O dispositivo fotográfico representa a pessoa diante dela ou aquela espelha a presença do próprio dispositivo? Ao mesmo tempo, qual a diferença entre uma nota de um real falsa e verdadeira em uma ordem econômica onde a riqueza não é mais produzida a partir da atividade produtiva, mas a partir de papéis ou títulos artificialmente valorizados em bolhas especulativas nas bolsas de valores e falcatruas contábeis em empresas? A nota falsa remete à nostalgia de um referente que não existe mais nas notas verdadeiras, e as notas verdadeiras remetem-se às falsas para afirmar, de forma negativa, a sua “realidade”.

A quarta fase é a do simulacro como pura aparência. Fase decisiva para Baudrillard por ser uma fase terminal a qual se refere como o “assassinato do real”, “o crime perfeito” ou à “greve dos acontecimentos”: é o regime dos simulacros puros, o momento em que a própria realidade é substituída pela sua contrafação, o simulacro substitui o real criando a hiper-realidade. Se na fase anterior o simulacro blefava (ou simulava), ou seja, ainda havia no horizonte a nostalgia de um referente real a que ele queria se assemelhar, agora o mundo torna-se cada vez mais parecido com modelos artificialmente produzidos, como os parques temáticos, por exemplo. De tanto o indivíduo posar para a câmera simulando atitudes ou personas cujos modelos vêm da mídia, tais modelos acabariam confundindo-se com a própria personalidade criando uma situação onde se esquece onde termina a realidade e começa a ficção, o Eu e o não-Eu. Distinção ociosa para o indivíduo que não se importa mais com isso: inconsciente ou imaginário são substituídos pela “brancura total” do modelo[4]

Ou, então, na infogenética onde o modelo algorítmico ameaça substituir o próprio processo evolutivo. O DNA humano poderá ser sequencializado para, a partir daí, criarem-se matrizes supostamente perfeitas para gerarem cópias ou clones. A replicação substituirá a evolução. O modelo que precede o real não necessita mais do antigo horizonte referencial para a simulação. Roga-se como o único princípio de realidade, sem mais o intercâmbio entre real e imaginário. Transparência absoluta: o simbólico e o imaginário são absorvidos pelo modelo e o seu código.

O “assassinato do real”

Guerra do Golfo (1992): o "não acontecimento"
Para demonstrar esta fase terminal do “assassinato do real” Baudrillard nos oferece os casos da cobertura televisiva da Revolução Romena em 1989 e da Guerra do Golfo em 1992 fatos que, para ele, se inscrevem no regime do virtual, dos “não acontecimentos”. Durante a cobertura televisão da revolução romena contra a ditadura de Ceausescu mostraram-se imagens da suposta descoberta de um ossário de mais de quatro mil vítimas da ditadura. Outros corpos teriam sido dissolvidos em ácido. O total de mortos chegaria a 60.000 ou 70.000. Tudo era uma encenação: os cadáveres em lençóis brancos não eram das vítimas dos massacres de 17 de dezembro de 1989, mas mortos desenterrados do cemitério dos pobres, oferecidos à necrofilia da TV.
“Desde logo, o próprio contágio das imagens, que se autoproduzem sem referência a um real ou a um imaginário, é virtualmente sem limite, e esse engendrar-se sem limite produz a informação como catástrofe”[5]
A mídia alimenta-se pela presunção da catástrofe. Esta natureza da informação midiática intoxica o próprio real que é como que adaptado às exigências televisivas. O objeto é aniquilado pela própria informação. Os fatos reais para tornarem-se “midiáticos”, “fotogênicos” ou “televisivos” são, na sua origem, simulações para aproximar-se daquela presunção da catástrofe e, portanto, atrair a atenção da mídia. Isso se distingue da pura dissimulação ou manipulação do real (o que corresponderia à segunda fase da imagem descrita acima). O próprio real se engendra como simulação como fosse um gigantesco prolongamento do estúdio da TV.
“Evidentemente, a partir do momento onde o estúdio torna-se a central revolucionária e a tela o único lugar de aparição, todo mundo acorre ao estúdio para figurar a todo custo na tela, ou ainda, se reagrupa de preferência na rua sob a mira das câmeras, que aliás filmam-se umas as outras. A rua inteira torna-se um prolongamento do estúdio, isto é, um prolongamento do não-lugar do acontecimento, do lugar virtual do acontecimento. A rua torna-se também um espaço virtual.”[6]
A Guerra do Golfo enquadrar-se-ia também neste não-lugar do acontecimento. Para além de toda racionalidade estratégica e militar, mesmo sabendo da derrota certa, Sadam Hussein declara guerra aos EUA invadindo o Kuait. Os motivos da deflagração da guerra nunca saíram do campo da especulação, mas, como primeira guerra transmitida ao vivo na história da mídia, Sadam sabia que o seu gesto via CNN se espalharia pelas redes de comunicação, tornando-se o novo líder da causa árabe. Do lado americano, a guerra foi propositalmente prorrogada pelo Pentágono, na medida em que os índices de audiência da CNN elevavam-se conjuntamente com a comoção da opinião pública e, mais importante, era ano eleitoral e George Bush buscava sua reeleição. É a auto-referência mortífera da informação: no final a mídia transmite um fato que ela própria criou. Auto-circularidade absoluta. Esta é a lição de Baudrillard: “a mais alta pressão da informação corresponde à mais baixa pressão do acontecimento e do real.”[7]

Neste cenário pós-moderno descrito por Baudrillard, os fatos não podem simplesmente acontecerem. Para efetivamente existirem devem ser “midiáticos” ou “televisivos” para transmutarem-se em imagem. Perdem a espontaneidade dos fatos históricos assim como um indivíduo cria um simulacro de si mesmo ao saber que está sendo filmado por uma câmera. Este é o momento da criação do simulacro: o signo passa a ser mais importante do que aquilo que ele representa. Mais do que existir os fatos devem tornar-se imagem para efetivamente acontecerem.

Segundo Baudrillard esta inversão na função semiótica dos signos está presente em três dimensões simultâneas criando a hegemonia dos simulacros no mundo contemporâneo:
“1) O capital se transcende e volta-se contra si mesmo no sacrifício do valor (ilusão econômica). Por assim dizer, ele salta por cima da própria sombra. 
2) O poder volta-se contra ele mesmo no sacrifício da representação (a ilusão democrática). 
3) O sistema inteiro volta-se contra ele mesmo no sacrifício da realidade (a ilusão metafísica)”[8]
A virtualização do capital através
da financeirização
Na primeira dimensão (a econômica) a produção de riqueza pelo capital se virtualiza com o fenômeno da financeirização no mundo econômico globalizado. A extrema liquidez dos fluxos financeiros permite uma produção de riqueza baseada pura e tão somente na especulação de títulos e papéis, sem mais nenhuma referência na produção real de valor a partir do trabalho humano. Signos financeiros tornam-se verdadeiras bolhas especulativas valorizadas por meio de notícias (sejam elas boatos, rumores ou informações oficiais) criadas para as mídias repercutirem. Da noite para o dia, empresas têm suas ações valorizadas produzindo enormes bonificações por meio de notícias habilmente plantadas no noticiário econômico para, mais tarde, serem desmentidas pelas mesmas fontes.  No espaço de tempo entre a divulgação e o desmentido, muita riqueza virtual acabou sendo produzida nas complexas transações financeiras. O valor-trabalho é substituído pelo valor-signo ou, por ser um signo sem possuir referência com a realidade, valor-simulacro.  

Mesmo indo para além do plano da circulação financeira do capital, ou seja, indo para o plano da produção real de bens e serviços, mesmo aí está presente o valor-simulacro. As inovações estéticas das mercadorias (design, embalagem, conceito de marca etc.) criadas e divulgadas pela publicidade e marketing produzem mais valor ao capital do que inovações propriamente concretas referentes ao valor de uso do próprio produto (inovação tecnológica, redução de preço, etc.). No final, consome-se não mais o produto mais o seu signo. Por isso temos uma verdadeira inversão metafísica: é mais caro dizer ao mercado que o produto existe do que fazê-lo efetivamente existir. A aparência antecede a essência, o efeito é anterior à causa.

O Terrorismo e a crise da Política

Na segunda dimensão (a política), o poder volta-se contra ele mesmo na sua espetacularização midiática. 

Uma estranha deflação começa a atingir a política, principalmente porque o seu objeto principal, o Poder, entra num acelerado processo de esvaziamento simbólico. Há algo de peculiar no comportamento do Poder nos tempos atuais: a necessidade de tornar‑se visível para a mídia, de chamar todos à participação. Para Baudrillard, há algo de irônico no Poder atual: se no passado essa apatia das massas seria positiva para a gerência tranqüila­ da política pelas classes dominantes, hoje ela é perigosa, pois pode denunciar a sua própria inutilidade:
“Durante muito tempo a estratégia do poder pôde parecer se basear na apatia das massas. Quanto mais elas eram passivas, mais ele estava seguro. Mas essa lógica só é característica da fase burocrática e centralista do poder. E é ela que hoje se volta contra ele: a inércia que se fomentou tomou‑o sigilo de sua própria morte. É por isso que o poder procura inverter as estratégias: da passividade à participação, do silêncio à palavra. Mas é muito tarde. O limite da “massa crítica”, o da involução do social por inércia, foi transposto. Em toda parte se procura fazer as massas falarem, se as pressiona (sic) a existir de forma social eleitoralmente, sindicalmente, sexualmente, na participação, nas festas, na livre expressão, etc.”[9]
Através da mídia a política simula-se a si mesma (a ilusão democrática, a simulação da vontade política, da representatividade do voto – o signo político) encobrindo uma única realidade: a morte do Poder.

O terrorismo é o sinalizador da crise do Poder
O terrorismo internacional e as formas de violência não‑anômicas são o primeiros sinalizadores desta crise do poder. O terrorismo recusa o sentido do poder. Ele é imediatamente destinado às ondas concêntricas dos meios de comunicação. A morte de um presidente ou o assassinato de um líder pacifista não conduz à queda de um regime ou de um sistema político. Seus autores sabem disso. Facções terroristas não visam, muito menos, à conscientização nem a uma representação ideológica. Seu único objetivo é marcar um lugar na mídia pela fascinação e pelo pânico. Pichações, violência de gangues e greves perdem sua natureza anômica (desestabilizar a ordem, contestar o poder, etc.), para adquirirem um alcance minimalista.
“É conhecido o fato, por exemplo, de algumas pessoas, reunidas para um protesto, numa demonstração ou manifestação política, estarem totalmente desorganizadas, difusas, dispersas até o momento em que lá aparecem as câmaras de tevê. No momento em que são acionados esses aparelhos, organiza‑se a passeata como se tivesse sido detonada pela claquete da filmagem e todo mundo sai pela rua representando a passeata. A televisão capta as imagens e, no momento em que as câmeras vão embora, as pessoas também se dispersam”[10].
O campo de enquadramento da câmara passa a ser o novo tempo forte do social em torno do qual os agentes sociais gravitam, inclusive o próprio Poder.
Além disso, o Poder dilui-se na própria diminuição do papel do Estado e seus governantes com a globalização. Os complexos fluxos financeiros em tempo real no planeta e a hegemonia dos interesses das empresas transnacionais superam em muito o alcance institucional dos Estados-Nação. O Estado passa apenas a homologar ou facilitar por meios legislativos e jurídicos as decisões supranacionais. Resta ao Poder gerenciar crises e demandas. Por isso, ele começa a abandonar os discursos ideológicos para incursar no pragmatismo. Seja de qual partido ou ideologia for, seu governante deverá dar respostas imediatas à crise, gerir o endividamento e as demandas não atendidas. Não é à toa que, cada vez mais, o parlamento e a representação política perdem força diante da centralização do poder no executivo. 

Com o esvaziamento do poder de decisão o Poder e a Política temem o seu esvaziamento simbólico. Por isso, precisam simular para a mídia que ainda têm um poder real. De que o voto e a democracia são ainda signos de representatividade. Se outrora o poder dissimulava sua essência (a dominação, a manipulação, as tramas, etc.), hoje corre atrás da mídia para simular que ainda possui um sentido, que ainda detém um tempo forte para o social. É o surgimento do “Estado­-espetáculo”. 

Que o poder sempre teve um caráter cênico‑teatral não é novidade desde Maquiavel. Porém, a novidade atual é que a encenação se desloca do campo da dissimulação para o da simulação. Precisa produzir fatos, programas, expor a vida privada de políticos e autoridades, criar choques econômicos, dar amplitude midiática às intrigas palacianas, isto é, munir os meios de comunicação de simulacros da sua realidade.

O Sacrifício da Realidade

Na terceira dimensão (a metafísica) está o sacrifício da realidade, ou seja, a consolidação de uma cultura neoplatônica caracterizada pelo primado do virtual e da simulação sobre a realidade. E a espinha dorsal deste neoplatonismo está na própria natureza da tecnologia digital. Diferente dos avanços tecnológicos anteriores (como a tipográfica, por exemplo) onde ocorreram verdadeiras revoluções com a criação de novas mídias, paradigmas e culturas, a tecnologia digital resume-se a digitalizar mídias já existentes no mundo analógico. 

Em outras palavras, apenas transpõem para ambientes ou interfaces digitais mídias, sons e imagens que já eram manipuladas no mundo analógico. Apenas com uma diferença: a infinita possibilidade de interferir na representação até transformá-la em signo vazio de referência. Chats ou salas de bata-papo na Internet substituem os contatos face-a-face, mas com um acréscimo: a possibilidade de o indivíduo simular diversas personas a cada contato virtual, eliminando qualquer rastro de alteridade ou ruído proveniente das relações humanas concretas (timidez, ansiedade, etc.). 

A manipulação completa das imagens digitais nega a própria alteridade do tempo como o envelhecimento físico. O crescimento vertiginoso das cirurgias plásticas significa o sacrifício do corpo real em nome do simulacro digital eternamente renovado pelo Photoshop. É o que Baudrillard refere-se como o “êxtase da comunicação”. O domínio destas verdadeiras próteses digitais de comunicação como telefones celulares, e-mails, voice-mail, faxes, pagers e palm pilots fazem o indivíduo estar continuamente plugado na rede de informação global. Isto cria uma descontinuidade temporal entre o mundo on line em tempo-real das redes com o velho mundo cronológico do dia-a-dia corporal. Esta descontinuidade cria verdadeiras desordens psicológicas como a “tele-pressão” onde o tempo virtual que, de tão acelerado, entra em choque com a cronologia temporal. O resultado é o sacrifício da cronologia da realidade (o envelhecimento, a reflexão, a maturação etc.) pela aparente perfeição das próteses digitais.

NOTAS


[1] LANE, Richard. Jean Baudrillard. London: Routledge, 2.000, p. 30.
[2] BAUDRILLARD, Jean. Para Uma Crítica da Economia Política do Signo. Lisboa: Martins Fontes, s.d., p. 180-181.
[3] Idem. Simulacros e Simulações. Lisboa: Relógio d’Água, 1991, p.13.
[4] Veja, por exemplo, as terapias de fundo cognitivo e comportamental, além de toda literatura de auto-ajuda, que prometem a transparência total do Eu por meio da eliminação dos “ruídos” provenientes do inconsciente ou dos traumas do passado.
[5] BAUDRILLARD, Jean, “Televisão/Revolução: o Caso Romênia”, In: PARENTE, André (org) Imagem Máquina, Rio de Janeiro, Editora 34, p. 147.
[6] Idem, Ibid., p.148-9.
[7] Idem, Ibid., p. 149.
[8] BAUDRILLARD, Jean, “O Poder Canibal” IN: Folha de São Paulo, Caderno Mais!, 15/05/2005, p.7
[9] BAUDRILLARD, Jean. À Sombra das Maiorias Silenciosas. São Paulo, Brasiliense, 1985. p.24.
[10] MARCONDES Filho, Ciro. Sociedade Técnológica. S. Paulo, Scipione, 1995. p.68.

Post integral acesse:

O Ceticismo Gnóstico de Jean Baudrillard (parte 1)

O Ceticismo Gnóstico de Jean Baudrillard (parte 2): os simulacros nada têm a esconder

O ceticismo gnóstico de Jean Baudrillard (parte 3): a "Pura Aparência" em "Show de Truman"

 

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